segunda-feira, outubro 13

Oitenta dias no hospício.

Assinei o maldito papel que me prendia nas celas dos alucinógenos, para alguns isso seria o paraíso na terra e para outros, o inferno do submundo. Sim, eu enlouqueci.
Dois dias dormindo no chão fizeram da minha vertigem da cama ressoar como loucura, e gritou tão alto a tal forma, que não sabia mais ouvir a minha própria voz. Quando descobriram que não chão desaguei por setenta e duas horas, logo fizeram, em alguns minutos a repreensão do meu ato sigiloso. Estava pálida, imunda por dentro e serena por fora, como sempre estivera. Caso esse que se fez presente em anos afinco, contemplando e assumindo cada papel que assumira na vida, desde a primogênita consciente a inconsequente consumidora. Os dedos retorcidos e o cabelo desgrenhado, a pouca roupa não fizera frio, nem calor... nem nada.
Quem me achou perdeu a paz consciente, perdeu o brilho por aquele ser de grandiosa plenitude, de sorriso alargado e brilho no olhar. Quem enxergou o contorcer do corpo amarelado soube distinguir até onde a vida lhe toma lucidez. E os olhos opacos perderam seu tilintar, o sorriso esquecido foi trocado por uma boca entreaberta. Sentia fome, a fome de descobrir o que me fez partir, o que me pudesse responder as incessantes perguntas, e talvez pudesse acalmar meu coração. Pois parti muito cedo, cedo demais para os demais. E parti sem adeus prévio, sem uma carta calorosa, sem mais.
Mudei de ares como uma carne que sai do freezer, meu degelo era lento e a fome que os médicos sentiam - de fato descobrir meu cativeiro - era imensa. Perguntas e açoites, como açoitavam o meu pensar, pois não pensara, não retrucava, vegetava. Um corpo sem alma, um descolar do pensamento vivo, assim pude enlouquecer em paz. E depois de tantas tentativas, de muitos medicamentos, o meu sequestro foi eminente, e o sequestrador desconhecido. O desespero dos que me encontravam era indolor, nada me trazia de volta, nada a mim ou de mim voltaria. De fato meu mundo se perdeu, pediu um paraíso falível, e conseguiu. Meus sonhos eram vazios, minhas dúvidas não me questionavam, não tinha nada, nada me tinha. As mãos carregava o cobertor que me cobria as noites, a única coisa que de mim não tiravam. O retorcia como quem pede socorro, sem um sussurro de lucidez, sem uma palavra estranha. O calar dos meus lábios só traziam mais médicos a minha volta, e menos conhecidos ao meu encontro.
Uma semana sem dizer uma palavra, dois dias sem tomar um banho direito. O quarto me parecia aconchegante, divisório e fedido. As cochas se amontoavam sobre mim, quem colocou tudo isso? Talvez sentira calor, talvez. Dormia por exatas oito horas, quatro pela tarde e mais quatro pela noite após as duas da manhã. O único despertar era dos olhos, e a única coisa que reclamara era o adormecer.
Um mês se foi, os comprimidos se tornaram aliados. A síntese de meus sentimentos, degustados sobre uma língua quieta, sobre cordas esquecidas. E o olhar opaco se dilata, viro um bicho. Saio as seis da manhã a procura de qualquer coisa, e no jardim encontro um compatriota. Pierre diz ser Monjardim, Pierre diz ser quem quer que seja, a não ser Pierre. E ele se tornou meu eu lá fora, meu eu perdido. Em Pierre minha alma recostou, e ele falara por meu corpo. Horas e horas sem sequer um balbuciar, e ele vai até o chafariz se embriagar novamente, bebe sedento a água suja, molha a barba branca, molha os cabelos grisalhos, molha meus pés. Agora Pierre é líquido, é deslizante e maleável. Assim como minha alma, colada a seu dorso.
Três da tarde, o relógio amplia a hora de adormecer, mas não sei como voltar a meus quartos, tantos quartos que mudei pela falta de cooperação. Então adormeço na grama, e Pierre resguarda meus sonhos. Coloca folhas a minha volta, e diz que o ciclo da natureza jamais deixará de me guardar. Agora Pierre é o mundo, a natureza..
Depois de religiosamente encontrar com Pierre todos os dias, ao sexagésimo nono dia, ele daria adeus ao mundo de adeus, a fruta mais madura do pomar de Deus se esvai num sorriso matinal. Pierre se deitou sob meus pés e os acarinhou, despedindo-se. E uma folha seca recostou sobre minhas mãos, me dizendo em verso; " um dia foras verde, e um dia, seca será. Mas só o tempo poderá secar a folha solta, só o flanar da folha ao chão a faz secar, garota resista, volte a esverdear" e Pierre se foi as sete e quarenta e cinco, e uma lágrima escorreu as nove e meia, depois que seu corpo saiu a frente do meu mirar. Seria Pierre meu desperto anjo?
Pela décima vez mudei de quarto, agora a minha janela dava para o jardim. Depois de escorrer o lamento por minha alma morrer, novamente desterro meu corpo, perdido. E a folha foi comigo, em meu bolso cheio de vazio ela contemplava o algodão surrado, e se despedaçava aos poucos, contando as horas de sumir de lá. Eles aos poucos tentaram por Pierre me resgatar, deixaram os remédios apaziguados, e me fizeram tomar sol um pouco mais. Depois da segunda morte de minha alma, meu corpo se esvaiu junto, só recostava o fado vivo a cama desfeita. E meu eu morto chorava do outro mundo, me pedia um carinho obsoleto, uma parcimônia de minha parte, que eu esqueci como redigir.
E no septuagésimo quarto dia, uma luz entrou em meu quarto, intensa e reveladora. A brisa da manhã me chamara a janela, e eu soube responder-lhe. Tentei com as mãos recobrir-me da luz, e do pó mágico que saia de sua manhã calma, sem sucesso, porém um sorriso me extornou. Voltei a cama e dormi, quebrei o laço de minha rotina. Seria Pierre novamente?
Dormi um sono de seis dias, um cansaço intenso me conduziu a letargia. Um coma residente e inexplicável, pela ciência humana. Mas ao acordar, despertei. Meus olhos medrosos se retorciam aos quatro cantos daquele quarto branco, de paredes brancas e janelas em tom pastel, acordei ao respirar que me faltara, ao medo que me consumia, de volta a mim. Minha alma retornou a meu corpo, finalmente. E os tubos em meu braço me doloriam as veias, e me deixavam tonta. Retire-os e levantei da cama, vesti o agasalho de sabe-se lá quem, andei no corredor sem destino e um pouco inconsciente, até a sala mais próxima. Bati três vezes, e antes do soar da quarta um sentinela me interrompeu, surpreso e assustado, perguntando-me o motivo da visita. Então de mim surgiu uma voz esquecida, um apelo do som, e disse-lhe que queria a minha nova velha vida de volta, dicotomicamente feliz. E o sentinela sorriu, pensou que minha loucura se aprofundasse.. Até que a porta se abriu, meu pai me puxou para dentro, para que pudesse me explicar, o abraçar e ver se o meu eu retornou de verdade.
E meu pai ouviu o meu discurso de minha velha nova vida, e me ouviu contar sobre Pierre e sua razão emocional, do meu eu perdido e morto, da minha alma morta duas vezes, e o retorno ao santuário do meu corpo.
E meu pai nunca me achou tão louca, meu pai nunca me achou tão perdida...

Mas nunca minha lucidez fora-me tão breve, nunca fui tão verde.

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