domingo, outubro 5

Voyage

Pegou sua maleta, relógio e coração. Juntou os pedaços do mesmo, cada estilhaço que largara pela casa, num canto qualquer, um vasilhame de cera ou debaixo dos cobertores. Minuciosamente beijou cada cômodo com os dedos, olhou-os com devido respeito e imunidade temporária. Nenhuma lágrima recostaria seu ardor sobre o velho assoalho.
Desceu a escadaria, enorme e barulhenta. O barulho de seus sapatos lhe ensurdeciam, e a crença do sorriso nos quadros o apaziguavam em diminuto. Diminuto vazio, logo substituído por um grito sufocado. Mudança de latência.
Fechou portas e janelas da cozinha, frestas e armários na sala e versos e poemas de seu coração. Trancou o que lhe restara em quartos estranhos, lembranças amargas e mágoas discretas. Como uma lágrima que cai quando se deita de lado. Impune, ela desce para dizer olá.
As chaves se amontoam, o molho lhe pesa a calça e a mente esquece o molho, agora sem sabor.
Cretina rotina de mil ventos, depois de abrir os portões. Andar no frio é abrasador, quando as temperaturas são iguais, nada se sente.
E na maleta seus pertences, cartas de amores improváveis, escrituras pela metade, restos de um alguém que se foi, restos de um si que faleceu. Uma caneta estourada, cansada de descrever o extenuante desencontro de seu curador. E derrama sua tinta azul sobre o chão acinzentando, e derrama o que escreveria se houvessem motivos, se quisesse escrever.
E diz adeus ao seu próprio adeus, ah Deus... perdoe-me. Está indo, vindo a marcar sua visita ao inesperado, e de espera, as três será sua consulta. Breve e indolor.

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