quinta-feira, janeiro 17

Androgeno 0612.

Lá estou, mais uma vez. Ônibus à passar, meus ouvidos com a mesma música de todo o tempo, do tempo todo e a espera incessante de algo que me leve pra casa, o mais rápido possível.
Penso no engarrafamento, pois a festa nesses quatro dias está parando a cidade, literalmente. Como fugir? Pensei. A orla é uma boa rota de fuga, eu diria.
Masco meu chiclete e bato meus pés, sinto um cheiro de cachaça e olho pra trás, são três ao se deliciar com o tal do cravinho. Finjo que nem percebo, e retorno a meu mundinho apesar de ser incomodada por gotículas que vão de encontro à meus pés, susto. Só escuto o sussurrar malicioso dizendo para ter cuidado com a menininha, no caso, a mesma que vos escreve.
Eram três, da pior espécie. Olhei feio e deixei pra lá, vai saber de onde aquelas criaturas surgiram e de qualquer forma, não eram o bastante para me irritar. Derrepente ele chega, para o meu brilhar dos olhos, subo, passo o cartão e penso comigo o quanto queria sentar, imediatamente. Quando lá na frente, vejo um banco vazio e um cabelo enorme que cobre parte de um deles, enorme cabelo. Vou feliz, alegre e serelepe para o descanso prometido, me sento e vejo uma figura estranha ao meu lado, voltado à janela como se estivesse se escondendo, curvo sobre o banco à esquerda, do qual observo. Nem sequer se incomodou quanto sentei, suas mãos ao meio de suas enormes pernas que quase não cabiam no espaço entre o banco e o vidro, suas unhas grandes em tom escarlate - assim como sua bolsa e cinto e faixa na cabeça- me faziam curiosa a cada segundo. Um short minúsculo e belas curvas, mas não há sinal de belos seios mas sim um pequeno "top" que cobre seu peitoral. No braço, uma borboleta sobre a prata grossa que reluzia com a luz do ônibus, um anel de cobra que se entrelaçava bruscamente e não sabendo ao exato onde ela começava ou terminava.
Apesar de não ouvir absolutamente nada que se passava lá fora, de alguma forma senti o meu objeto de estudo susurrar algo que se perdeu, diante dos meus fones. Logo retirei um deles, em vão. Não ouvia sua voz e não enxergava sua face pois só se voltava ao seu refugio - se por assim dizer - a janela pela qual se voltava, sem me dar esperanças de conhecer-te.
De alguma forma, procurei puxar assunto. Logo perguntei o trajeto do ônibus, devido ao engarrafamento - questionando com a cara mais lavada desse mundo- se o bendito, iria parte pela orla parte pela paralela. Me respondeu friamente que sim, que iria passar parte pela paralela mas que "já já" iria entrar na orla. Agora sim, pude ver seu rosto. Seus grandes lábios pintados nas bordas de marrom, assim como suas sobrancelhas - inexistentes - apenas traços de um lápis qualquer num rosto que, apesar de tudo, não queria mesmo ser visto. Uma faixa cobria parte de sua testa e assegurava que seu cabelo retrocedesse ao vento, a chuva, à maremotos e tufões. Seu queixo era bem definido, agudo e cerrado. Meus olhos atentos lhe enxergavam os dentes, com uma fenda ao meio dos mais vistos, e eu que exatamente o estudava, não ouvi palavra alguma que tenha me dito apesar de ter um máximo de curiosidade por isso.
Por segundos fui segregadora, mas logo recordei o motivo pelo qual lhe questionei, então recobrei a conversa com mais uma de minhas infalíveis perguntas;
- Entra na rua da Ucsal, certo?
Pensou, pensou e me respondeu que entrava na rua do Playboy, Kama Sutra, Decameron & Hollywood. Com um sorriso de canto de boca, porém como ao primeiro sussurrar, aos olhos não me dava atenção.
Pensei comigo, se não conhecia a Universidade Católica de Salvador, porém não questionei, apenas ouvi e sorrateiramente respondi um sim contundente ao balançar a cabeça.
Apesar de não fitar meus olhos, tentou falar um pouco comigo. Falou sobre o trânsito, e sua tentativa de fugir pela orla, assim como eu.
Logo percebi que algo nos observara, era o motorista pelo espelho com aquela cara de quem desaprova com o olhar. Para o mesmo espelho olhei, e sorri sem ao menos lhe dizer que sim ou que não. Ao lado, uma menina barriguda e sua filha de mais ou menos quatro, que gritava desde o momento em que subi no bendito. Era um clima estranho, como se todos me observassem, curiosos como eu, sobre a pessoa ao meu lado.
Ao conversar um pouco comigo, logo parou. Acho que se recordou de algo que realmente até o momento não descobri. Fiquei meio confusa, porém aceitei e não invadi seu mundo novamente.
Com os mesmos olhos que cobri teus pés até seus longos cabelos, novamente voltei à suas mãos que nunca se deixavam a pressionar uma à outra, abruptamente. Retornando também, à janela que lhe esvoaçava os longos e crespos cabelos.
Uma figura androgena, homogênea e desorientada à minhas curiosidades minha busca de sei lá o que, assim permanecendo taciturno e eu, temente à minha amiga que tenta saber o porquê de tudo.
Logo se levantou, quase que me cobriu por completo. A cabeça se abaixava para não tocar o teto do automóvel, seu salto era fino e como todo seu adorno, chamava muita atenção. Levantou e rapidamente foi próximo aos degraus, nos quais permaneceu até descer.
Por mais surda que estivera por causa da música em minha mente, pude ouvir o balbuciar dos integrantes do mesmo que eu havia, risadinhas sarcásticas e comentários maliciosos.
Permaneceu nos degraus sem olhar pra trás, uma atitude bem previsível e plausível, eu diria.
Eu, me detive a pensar no momento e nada mais, pelo qual realmente me resguardei. Rápido chegou sua hora de descer, e receber os atrativos dos demais, podres comentaristas.
Assim segui ao pensar, porque algo diferente do normal é tão comentado, mal visto e sempre, sempre expulso, animalzinho escondido entre grades e que de lá, não deve sair. Apavorado, esguio sobre os comentários e calado sobre as respostas, nunca ditas.

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