segunda-feira, abril 7

A cidade de Villas Boas.

Quando deixei a cidade, nem olhei pra trás. O trepidar da carroça me fazia enjoar, todas as vezes que subi nesse troço, quase coloquei minha alma para fora. Depois que passou a ânsia, já estava longe demais para sofrer por aquela cidadezinha, que tanto me maltratou. Dali, guardei muitas mágoas, das quais nunca vou esquecer. Mas não me tira da mente, que nasci e cresci nesse antro de comodidade e discriminação.
Penso que por vezes esqueci do quanto fui criança, amadureci cedo demais. Vi o bastante para ser tão dura, dura o bastante para um menina tão pequenina. Meus vestidos de tantas anáguas, se sujavam no barro vermelho e eu simplesmente adorava, não me era necessário bonecas e panelinhas, eu tinha a mim e aquele mundo todo. Nascia debaixo das árvores, crescia nas águas quando decidia nadar sobre aquela lagoa cristalina. Via as folhas secas no outono, caíam sobre meus olhos curiosos, sempre curiosos. Na primavera as flores me faziam chorar, elas desabrochavam às manhãs, um botão de cada vez em sua ordem florescente e misteriosa. Adorava o orvalho que ficava nas folhas e o que se acumulava nos copos-de-leite, fazia das minhas mãos o refrescar dos dias, com aquelas gotículas.
Sempre me sujava, minha mãe me repreendia a todo instante.. mas sabia que eu gostava tanto de descobrir toda aquela vida, fora da casa que tanto me asfixiava. Meu pai vivia viajando, quando voltava sequer sabia meu nome ao certo, nunca lhe cobrei que soubesse. Meus irmãos eram mais velhos, um foi para a cidade grande ser um grande médico e o outro, se jogou ao mundo com dezessete anos, foi para europa trilhar sua revolucionária mente entusiasta. Sempre foi meu ídolo, acho que seus genes pulsam em todo meu ser.
Sempre quis ser médica, mas nunca tive muita força de vontade com ferimentos. Tinha nojo e me dava náuseas, só de ver. Sangue era-me outro empecilho, o maior de todos eu diria. Logo esqueci da medicina, e descobri a minha verdadeira vocação, os livros.
Quando muito pequena, minha mãe me deu um livro de literatura. Se chamava "O poeta" era de um autor Italiano, que nunca consigo soletrar o nome direito. Foi o meu primeiro contato com esse mundo que tanto me encantou, aos nove anos de idade. Mal entendia sua forma de escrever todas aquelas páginas, mas lembro de uma frase da qual me fez pensar. "Tudo na minha vida, só será infinito o suficiente, se eu puder esquecer que o finito me é tão injusto." Algo me tocou nisso, e só após dez anos descobri o porque.
Quando completei quinze anos, passei por muitas dificuldades. Meus pais brigavam bastante, e eu fiquei muito perdida no meu mundinho, a minha redoma particular e fiz questão de calar o que sentia pelas pessoas aos poucos, não demonstrava nenhum tipo de sentimento com os tais. Só os animais e as flores me eram ouvintes, dos bons. Depois de longos anos nessa vida de mundos paralelos, também porque o mundo se perdia lá fora, as pessoas daquela época eram totalmente imbecis, e naquela maldita cidadezinha a segregação era ato de altruísmo ao futuro.
Me fazia enjoar, mais do que a carroça. Em seu livro, o italiano contava das tantas guerras que ele via acontecer. Todas elas por uma superioridade que um sentia por ter isso ou aquilo, e eu vi nesse meu mundo, uma distância não tão grande, quanto a linguagem me proporcionara. Redigi na mente toda e qualquer reação de estranheza quanto as pessoas que faziam da superioridade um modo de vida, perdi muito por isso, mas ganhei a minha mente e o meu coração sempre crédulos em uma forma de ser verdadeiro. Perdi o bastante com meu pai, aquele pai que tanto me dizia, com a boca cheia, para ser uma dama ao invés de uma "procuradora de problemas", como citava. Não lhe respondia, terminava meu jantar escondia meu livro no vestido e ia para o quarto le-lo, até adormecer.
Quando acordei na madrugada, ouvi gritos no quintal. Era a minha mãe, desesperada. Meu pai havia atirado em um negro, que tentou pular a cerca da propriedade para pegar os milhos que nunca eram colhidos. Ele sangrou até morrer, sem ninguém lhe dar socorro. Assim ouvi da Matilde, a única que era um ser humano naquela casa. Matilde era a cozinheira, cuidou de mim a toda vida, agradeço a ela tudo que sou hoje, porque enfim, ela me criou. O monstro que mata uma pessoa, disse que em sua casa nenhum bicho poderia roubar-lhe o que era de direito, que o maior fazendeiro de Villas Boas, não poderia permitir um ato desses. Quase cuspi na sua cara quando ouvi, e o fiz, logo depois. Quando ele me levantou a mão e acertou em cheio a minha face, mas já tinha me maltratado o bastante a deixar que uma vida se fosse em vão, assim como a minha, que achara que uma hora iria também.
Minha mãe nada fazia, vivia em suas eternas rendas. E vivia na sua eterna lamentação por ter uma filha que não obedecia o pai, que o detestava, e fazia questão de mostrar isso. Não a culpo por ser um brinquedo, por ser um fantoche que nunca teve um Gepeto para transforma-lhe em ser humano. Pobre coitada, através dos anos a vi perder a juventude e apenas aos trinta e sete anos, vi a vida lhe dar um golpe fatal, a morte de um de seus filhos, o mais querido dos três, o médico. João Paulo Villas Boas, grande médico em Minas Gerais, morrera em uma noite n'uma casa de jogatina. Um fim absurdo para uma pessoa tão brilhante.
Minha mãe não suportou, logo morrera, acho que de desgosto... três meses depois.
Meu pai perdera a única coisa que lhe fazia um pouco ser humano, Maria Eduarda Visconde e Villas Boas. Minha mãe, minha mãe que nunca foi-me mãe, mas que era a única que tinha.
Então logo seu ranso era cada vez mais acentuado, e eu cada vez mais obliqua ao mundo. Seus desastres foram cada vez piores, sua discriminação piorava a cada instante. Até o dia em que Pai João aparecera em sua vida. Ele era o pai de Zulu, o mesmo do milharal. E lá mesmo meu pai deu seus últimos suspiros em vida, desfeita com um facão velho.
Aos vinte e três anos, eu fui embora de Villas Boas. Meu irmão, Carlos Eduardo me mandara uma carta, estava no Rio de Janeiro a minha espera. E eu nem sequer pensei em ficar naquela cidade, larguei tudo que aquela casa representava para trás.
Peguei apenas meus livros, e uma foto minha de garotinha. Beijei a matilde na testa, e lhe abracei com um eterno tom de saudade. Lhe deixei a casa e tudo que nela havia, e lhe disse com os olhos a lacrimejar que ia seguir o meu rumo, finalmente.
Subi na maldita carroça, a mesma que sempre me deu enjôos. Mas sentia-me feliz de me despedir do meu passado, e a minha vida nova me esperava, com o meu irmão e as minhas palavras. Todas elas se fizeram, saudosas ao meu amigo Italiano de infância, no qual me inspirei para escrever sobre minha vida em Villas Boas.

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